A mulher e a guerra: Das Resistentes aos Fornos de Hitler

A Segunda Guerra Mundial é um dos meus temas preferidos de leitura, por isso refletir sobre a ligação entre a mulher e a guerra faz parte dessas leituras. A guerra no feminino já foi uma abordagem de que falai várias vezes no blog, através de diferentes sugestões de leitura sobre o tema bem como partilhando a minha opinião sobre um dos livros mais marcantes que li sobre o tema.
O ano de 2021 marcou a criação do meu clube de leitura em que foram assinaladas 12 efemérides ao longo de doze meses e de doze livros, onde a ligação entre a mulher e a guerra também esteve presente. No fundo, este clube de leitura não foi mais do que estender o meu projecto “Ler é respeitar a história” a mais pessoas e permitir a partilha sobre um livro do mês focando os temas da Primeira e Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo e a Rússia dos Romanov. Hoje venho falar-te de dois livros que integraram o clube de leitura e o “Ler é respeitar a história” e que exploram, de forma extraordinária, a relação entre a mulher e a guerra.
A mulher e a guerra: As resistentes que lutaram contra Hitler nos guetos
“As resistentes”, de Judy Batalion, explora os feitos extraordinários de mulheres judias da Resistência na Polónia que ficaram durante demasiado tempo desconhecidos de todos nós. A maior parte das vezes, quando pensamos na ligação entre a mulher e a guerra durante o período da Segunda Guerra Mundial, vem-no à lembrança as fotografias de milhares de mulheres a chegarem às plataformas de Auschwitz acompanhadas pelos seus filhos. Imagens atrozes para qualquer ser humano e que expõem o lado mais negro da guerra, em que milhares de crianças se viram privadas das suas vidas apenas por terem nascido do lado oposto ao de Hitler. Mas a Segunda Guerra Mundial teve um outro lado feminino… Houve espias, houve mulheres na frente da Resistência que lutaram até ao fim em nome de salvarem as suas famílias e todos os que eram perseguidos em nome de um regime que queria conquistar a Europa e o mundo, ao mesmo tempo que fazia uma limpeza étnica por onde passava.
“As resistentes” é um profundo trabalho de investigação de Judy Batalion que me deu um murro no estômago… Ainda que a história de Renia não me fosse totalmente desconhecida, Batalion trouxe-a à luz do dia de uma forma inegavelmente magistral mostrando que não existe isso de sexo fraco. As mulheres que conhecemos em “As resistentes” são as mulheres que lutaram, que se apaixonaram, que acreditaram num ideal, que mostraram saber trabalhar em Informações tão bem ou melhor quanto qualquer homem e que foram capazes das sabotagens mais incríveis. Este é um livro carregado de força e que todos deveriam ler, sejam mulheres ou homens. A mensagem de Batalion, que felizmente se cruzou com o livro Freuen in di Ghettos (Mulheres dos Guetos) durante o seu trabalho de pesquisa, mostra o quanto é importante continuar a ler e a escrever sobre o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial.
A mulher e a guerra em “As resistentes” mostra o quanto não nos devemos deixar enganar pelo rosto mais sereno, o qual pode esconder a maior força e resiliência do mundo! Este livro é uma homenagem clara a todas as mulheres, de todas as idades, que lutaram ao lado dos homens contra Hitler e os seus tentáculos espalhados por toda a Europa. É um livro feminista que explora a ligação entre a mulher e a guerra mostrando que a vida pode ser muito mais do que podemos pensar, mesmo no meio das maiores atrocidades do mundo. Um dos livros que mais me marcou no ano de 2021 para o projecto “Ler é respeitar a história”.
A mulher e a guerra: “Os fornos de Hitler” segundo o olhar de Olga Lengyel
“Os fornos de Hitler” (título original: “Five chimneys: The story of Auschwitz“) é o livro do mês de Agosto do Clube Leituras descomplicadas, um livro escolhido para assinalar o Dia Europeu em Memória das Vítimas do Nazismo e do Estalinismo, comemorado a 23 de Agosto em toda a Europa desde 2008 após a assinatura da Declaração de Praga sobre a Consciência Europeia e Comunismo, sendo um tributo a todos os que pereceram como vítimas de regimes autoritários e totalitários e que também se chama Dia da Fita Preta ou Black Ribbon Day.
Olga Lengyel nasceu na Transilvânia, em 1908, quando esta região fazia parte do Império Austro-Húngaro e escreveu “Os fornos de Hitler” dois anos após o final da Segunda Guerra Mundial, refletindo todas as suas memórias de sobrevivente do mais famoso campo de concentração nazi e pretendendo constituir-se como uma forma de não silenciar a memória de todos os que sucumbiram por debaixo da bandeira da suástica, mantendo vivos todos os homens, mulheres e crianças que morreram em Auschwitz. Nas próprias palavras de Olga:
Ao organizar este registo pessoal tentei levar a cabo a missão que me foi atribuída por tantas reclusas minhas companheiras em Auschwitz e que pereceram de uma maneira tão horrível. Esta é a homenagem que lhes presto. Que Deus tenha as suas pobres almas em paz! Nenhum inferno que alguém possa conhecer será capaz de igualar o que elas suportaram e viveram. Para ser franca, quero que o meu trabalho signifique mais do que isso. Quero que o mundo leia e se empenhe para que isto nunca, nunca mais volte a acontecer. Pois não posso acreditar que depois de ler este relato ainda persistam dúvidas
E esta última frase toca num ponto chave sobre o Holocausto: em muitos países, o Holocausto não é falado nos programas escolares ou, pelo menos, é abordado de forma muito supérflua, quase sem tempos escolares, como se nada disto tivesse acontecido. Felizmente que muitos investigadores se dedicam a este tema e nos trazem os factos históricos e os relatos de sobreviventes necessários à construção de uma mentalidade global de que este tipo de acontecimentos nunca se deverão repetir…
“Quero que o mundo leia e se empenhe para que isto nunca, nunca mais volte a acontecer. Pois não posso acreditar que depois de ler este relato ainda persistam dúvidas. Mesmo ao escrever as minhas derradeiras palavras, erguem-se vultos diante de mim implorando-me em silêncio para contar as suas histórias. Sou capaz de resistir aos homens e às mulheres, mas existem os fantasmas das crianças…” (pág. 238)
Apesar daquilo que muitas notícias nos possam trazer vindo de outros locais do mundo, em que muda apenas a nacionalidade e a religião…
Antes de mais e de descrever a minha opinião sobre este livro, devo aqui fazer a ressalva que este é um livro forte e que pode impressionar pela sua descrição gráfica. Assim, pode não ser adequado para quem nunca tenha lido sobre o tema, que seja mais impressionável e que possa não estar a atravessar uma fase psicológica muito positiva. Livros com a intensa carga psicológica que este livro possui devem ser encarados com o devido cuidado. É essencial ler sobre o tema, mas sem que isso se possa constituir como um fardo ou ser aflitivo para quem lê. Quanto à minha opinião… Este livro está, sem dúvida, entre os meus preferidos sobre o tema que li em 2021. Quando se lê há vários anos sobre um mesmo tema, pode achar-se que já nada nos vai surpreender… Mas quando encontramos livros que foram escritos passados muitos poucos anos do final da Segunda Guerra Mundial, ainda sem grandes filtros e distanciamento dos acontecimentos, esses livros acabam por nos trazer uma dimensão psicológica diferente daqueles que são escritos com a névoa do tempo a pesar sobre si.
A escrita de Lengyel é poderosa de tão gráfica e crua que é. Não sei se esse facto terá origem na sua formação de base (Olga era uma enfermeira húngara antes da guerra), que faz com que se tenha um pragmatismo diferente, mas a forma como as diferentes realidades do campo são descritas impregnam-se na nossa pela e é impossível ficarmos indiferentes a tudo o que se lê. Na pág. 57 pode ler-se: “Em todas as vezes, este espectáculo era trágico e ao mesmo tempo humilhante. Humilhante não só para as pontes sacrificadas, mas para toda a humanidade. Isto porque estas almas desamparadas que eram agora levadas para os matadouros eram seres humanos – como vocês e como eu”. Era mesmo isso que os campos de concentração eram: últimos bastiões de um regime onde a Humanidade era dilacerada todos os dias e onde se arrancava, de todas as formas, a dignidade a milhões de pessoas. “Contudo, vi muitos reclusos agarrarem-se à sua dignidade humana mesmo até ao fim. Os nazis conseguiram degradá-los a nível físico, mas não foram capazes de humilhá-los em termos Morais. Por causa destes poucos exemplos, não perdi por completo a fé na humanidade. Se, mesmo na selva de Birkenau, nem todos eram necessariamente desumanos para com os seus semelhantes, então na realidade ainda há esperança” (pág. 242). Mas mesmo assim, isso não impediu que houvesse sentimentos de luta e de resistência entre os prisioneiros: “Nesta altura, tinha duas razões para viver: uma delas era trabalhar com o movimento da resistência e ajudar enquanto conseguisse manter-me de pé; a segunda era sonhar e rezar para que chegasse dia em que pudesse ser livre e contar ao mundo:” isto foi o que eu vi com os meus olhos. Nunca se deverá permitir que aconteça de novo” (pág. 95). Olga Lengyel permite-nos também um vislumbre de alguns dos fatores que motivavam todas as práticas nazis nos campos de concentração e uma dessas motivações estava alicerçada na teoria geopolítica de Ratzel do seu Lebensraum: “Uma vez perguntámos (…) qual a razão básica para a esterilização e a castração. (…)os alemães possuíam uma razão geopolítica para estas experiências. Se conseguissem esterilizar todas as pessoas não germânicas que continuassem vivas depois da sua guerra vitoriosa, não haveria perigo de haver novas gerações de povos inferiores. (…) os inferiores pereceriam sem descendência” (pág. 206). E não poderiam ser mais atrozes estas motivações!
Este livro é um relato profundamente poderoso de força humana, de pensar que os números de mortos nos campos de concentração pode ainda ser muito superior aquilo que se conhece actualmente e que nunca se terá a verdadeira visão do número de pessoas que sucumbiram desta forma. Olga descreve, na pág. 128, o processo de tatuagem dos reclusos de Auschwitz-Birkenau com o número no braço. Refere que o procedimento de tatuagem não ocorria para todos e que os que não tinham número, não tinham depois registo de óbito nos ficheiros… Então os números dos mortos nos campos podem ser ainda mais assustadoramente superiores por causa de todos os que não foram tatuados e que não constam dos registos… Verdadeiramente assustador! As memórias de um ser humano devem ser sempre heranças maiores da sua existências e devem ser valorizadas como tesouros maiores de um povo. Acho que Olga Lengyel conseguiu cumprir a sua missão de homenagear e dar voz a todos os homens, mulheres e crianças que morreram em Auschwitz e em todos os outros campos de concentração da máquina nazi. Olga conseguiu, através das suas palavras, mostrar o melhor e o pior que a raça humana pode ter. Palavras duras mas necessárias. Memórias tristes mas poderosas!
Para quem tiver interesse no tema e depois de ler as memórias de Olga Lengyel, recomendo a leitura de “O farmacêutico de Auschwitz”, de Patricia Posner, que retrata o outro lado dos campos de concentração, a história dos perpetuadores da máquina nazi.
Não deixes de ler a opinião da Andreia Morais, do blog As gavetas da minha casa encantada, sobre a leitura que fez sobre “Os fornos de Hitler” na sua participação no clube de leitura.
E não deixes de partilhar este artigo no Pinterest para que mais pessoas possam conhecer estes dois extraordinários livros sobre a Segunda Guerra Mundial!
Os livros “As resistentes” e “Os fornos de Hitler” foram-me gentilmente cedidos pela Planeta de Livros, em apoio ao Clube Leituras Descomplicadas e projecto “Ler é respeitar a história”.
"Ler é respeitar a história": O projecto do meu coração continua em 2022! - Leituras descomplicadas
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