Fiodor Dostoiévski: A lupa profunda sobre a mente

Se gostas de literatura e a chamada literatura clássica não te assusta, o nome de Fiodor Dostoiévski não te é desconhecido. Considerado um dos maiores autores russos, os livros de Dostoiévski têm sempre a existência do indivíduo como ponto de partida da sua narrativa. Diz-se que é ele o pai do existencialismo na literatura, uma corrente que defende que o homem possui a liberdade e a responsabilidade do seu próprio destino. Os livros de Fiodor Dostoiévski centram-se sempre em personagens atormentadas, a quem cabe construir o seu destino, que nem sempre poderá ser o mais feliz. Livros como “Crime e Castigo” (1866) ou “Demónios” (1872) surgem como algumas das suas principais obras, marcando um percurso literário que marca gerações de leitores até aos dias de hoje.
Fiodor Dostoiévski dispensa apresentações. Com uma obra caracterizada por retratar o sofrimento e por mergulhar profundamente na mente humana, a que o próprio chamou de realismo fantástico pela dramatização da realidade que surge nos seus textos, é impossível ficar indiferente aos seus livros. Hoje trago-te um pouco sobre a história deste autor russo e a minha opinião sobre os livros que já li até ao momento da sua obra, no dia em que assinalam 200 anos sobre o seu nascimento.
Quem foi Fiodor Dostoiévski?
Nascido em 11 de Novembro de 1821 em Moscovo, Dostoiévski desde cedo teve de lutar contra realidades concebidas na sociedade russa. Filho de uma dona de casa e de um médico militar, não cresceu num ambiente abastado como aconteceu com outros autores russos, como Gogol ou Tolstoi. Seguindo a raiz militar da educação do seu pai, Fiodor fez a sua formação na Academia Militar de Engenharia de São Petersburgo, algo comum no Império Russo dos Czares. Apesar de seguir uma carreira dita tradicional na sociedade russa, acabou por seguir um caminho de forte oposição ao Czar Nicolau I, chegando mesmo a ser condenado à morte, pena que viria a ser substituída por cinco anos de trabalhos forçados num gulag na Sibéria.
Desde cedo que a sua escrita se centrou na reflexão sobre o indivíduo e sobre os lados mais negros da sua mente. “O duplo” (1846) é um bom reflexo disto, como se pode ler na sua sinopse:
Muitas das inquietações do autor estão já presentes neste texto: uma história de um funcionário público obcecado pela existência de um colega, réplica de si próprio, que lhe usurpa a identidade, acabando por levá-lo à insanidade mental e à rutura com a sociedade. A afirmação da liberdade individual contra instituições e normas existentes é precisamente o tema central do livro, ainda que sobressaia a compaixão pela condição dos humilhados, outra recorrência na obra do autor. Com uma riqueza de recursos estilísticos admirável – comparada, por Nabokov, à de James Joyce – este é um romance intensamente criativo, que rompe com as convenções literárias.
Paralelamente à sua actividade como escritor, Fiodor Dostoiévski foi também jornalista, tendo sido fundador da revista “Época”, editor-chefe do jornal “Cidadão” e proprietário do jornal “Tempo” juntamente com o seu irmão.
“O duplo” e “O jogador”: Haverá aqui um pouco de Dostoiévski?
“O duplo” (1846) e “O jogador” (1867) foram os dois primeiros livros que li de Dostoiévski. Cada um deles, à sua maneira, explora dimensões da mente humana carregadas de um turbilhão de emoções. Não será à toa que pensadores como Freud e Nietzsche se terão inspirado nos seus livros. “O duplo” foca a saúde mental num turbilhão repetitivo de angústias, de peso social e de profundo sentimento de incompreensão. Já “O jogador”, em jeito autobiográfico, explora a dimensão do vício, da adição e as suas consequências nas relações e nas pessoas. Ler estes dois livros é quase participar numa sessão de terapia em que se deita no divã a mente humana, incompleta, retorcida e amedrontada pelos medos vários de se ser humano e pelo peso do que os demais podem pensar.
Não sei se estes dois serão os melhores livros para começar a ler a obra do autor… São livros separados por cerca de 20 anos de vida do autor, demonstrando claramente o peso da sua evolução enquanto indivíduo, enquanto escritor e enquanto observador da vida à sua volta. Gostei particularmente de “O duplo” por abordar a saúde de uma mente conturbada numa época que se estava ainda bem longe de ter a consciência da importância da saúde mental como temos nos dias de hoje. Em vários pontos do livro, cheguei a pensar se Dostoiévski não ficaria esgotado de escrever os seus textos dada a intensa carga emocional que podemos encontrar nas suas narrativas. “O jogador” diz-se tratar-se de uma autobiografia do vício que o próprio Fiodor carregava consigo. Um livro que vai agradar a quem goste de retratos sociais de outros tempos, em que todas as decisões se baseavam, primeiro e antes de tudo, na posição social e na manutenção de uma reputação nem sempre brilhante.
“O eterno marido” e um lado mais cómico de Dostoiévski
Este foi o terceiro livro que li de Fiodor Dostoievski. Este é um livro com uma clara aposta na descrição profunda de sentimentos “elaborado em função de uma personagem frágil, propensa a uma passividade que o expõe ao ridículo, e as suas tentativas de abafar os ressentimentos e de alcançar a felicidade a todo o custo”, como se pode ler na sua sinopse. Em “O eterno marido” (1861) existem emoções à flor da pele, quase pinceladas de loucura em alguns momentos, que me fizeram recordar algumas das passagens de “O duplo”: o senhor da fita de luto no chapéu e os seus encontros com Veltchanínov, que permanecem na mente deste personagem, fazendo nascer um mau humor sem explicação, fazem lembrar os encontros nesse outro livro do autor.
A escrita de Dostoiévski pode nem sempre ser de fácil leitura. É um autor que nos coloca permanentemente à prova com a sua narrativa rica de contornos, de curvas e de contracurvas como a superfície do nosso cérebro, despoletando emoções várias e refletindo sempre, de forma prodigiosa, sobre a condição humana e a forma como as relações entre as pessoas podem ser levadas ao limite. Gostei particularmente de ler este “O eterno marido”. Tem partes com mais peripécias que os dois livros que li anteriormente e chega mesmo a arrancar sorrisos em algumas partes que nos faz imaginar como seria este livro passado a filme. Ler Fiodor Dostoiévski é mergulhar nas raízes mais profundas da essência russa e da compreensão de uma sociedade que sempre despertou curiosidade no mundo ocidental.
A leitura da obra de Fiodor Dostoiévski insere-se no projecto #onzededostoievski realizado em parceria com a Editorial Presença.
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