Marta Martins Silva: Quem é a autora do livro “Madrinhas de Guerra”?

O nome Marta Martins Silva não te é desconhecido se leste o livro do mês de Abril do Clube Leituras descomplicadas. Com o mote de celebrar o mês da Liberdade, o livro escolhido foi “Madrinhas de Guerra” (link WOOK, link Bertrand), um livro que explora um pouco da História de Portugal, concretamente a correspondência entre os militares portugueses no Ultramar e as suas madrinhas de guerra. Não conheces este livro? Então fica aqui a sua sinopse:
«Eu sou um militar longe, muito longe da minha terra natal […] e com a sua ajuda o tempo passava um bocadinho melhor.»
A chegada do correio era o momento mais aguardado pelos militares que combatiam na Guerra Colonial. Em Angola, na Guiné e em Moçambique, milhares de rapazes portugueses viveram o inferno na terra, e as cartas que recebiam da metrópole eram o conforto que precisavam para se sentirem mais perto de casa. Muitas destas cartas eram escritas por mulheres que eles não conheciam mas que aceitaram o repto do Movimento Nacional Feminino para se corresponderem com os militares e lhes oferecerem um ombro amigo durante a comissão em África: palavras de alento que deram, em muitos casos, lugar a declarações apaixonadas que chegaram ao altar. Madrinhas de Guerra conta o papel quase esquecido destas mulheres pela voz das próprias, mas também as lutas dos homens a quem escreviam, protagonistas de uma guerra que deixou atrás de si um rasto de sangue e destruição. Por entre histórias de encontros e desencontros – entrelaçados com a História de Portugal dos anos 60 e 70 do século passado -, há lugar aqui para o que de melhor ficou desse tempo tão duro para quem o viveu: o amor.
Este foi o ponto de partida para um mês carregados de óptimas partilhas no clube de leitura, que levou a outras partilhas com quem foi madrinha de guerra e a reflexão sobre o que era o Portugal antes do 25 de Abril de 1974: a sua realidade social, o peso do Estado Novo e a condição da mulher. E porque as partilhas sobre livros ficam sempre muito mais completas quando se fica a conhecer um pouco melhor quem os escreve, desafiei a Marta Martins Silva a falar um pouco sobre si. Aqui fica o resultado dessa entrevista. Vamos conhecer a mulher por detrás do livro “Madrinhas de Guerra”?!
Antes de mais e porque os leitores têm sempre muita curiosidade sobre os autores dos livros que lêem, quem é a Marta Martins Silva? Como nasceu a sua paixão pela escrita?
Acho que o que me define melhor é que sou uma otimista convicta, aquela pessoa que tenta retirar o melhor de cada coisa e que se entusiasma com o mais pequeno pormenor, o que faz com esteja permanentemente encantada com esta oportunidade que é viver. Nasci em Aveiro em 1984 e aterrei em Lisboa em 2007, embora entre uma e outra cidade tenha vivido cinco anos no Porto. Sou jornalista há 15 anos porque nunca me imaginei a ser outra coisa que não uma contadora de histórias reais – ainda na adolescência o meu sonho foi ser repórter de guerra, mas com o tempo percebi que o meu caminho passaria por contar a vida daqueles com quem me ‘cruzo’ todos os dias e dar voz a quem habitualmente não tem. Sou uma mãe orgulhosa de dois rapazes a quem espero conseguir ensinar que devemos sempre ser gratos às pessoas (e às coisas) que nos fazem bem. Escrevo desde que me lembro de saber escrever: já em miúda escrevia quando estava contente, escrevia por estar triste, escrevia quando me entusiasmava ou quando não sabia o que fazer. Escrevia por tudo e por nada, escrevia sobre tudo e sobre nada. É das coisas que me faz mais feliz: juntar palavras e dar-lhes um sentido. No fundo talvez me organize enquanto escrevo, mesmo quando escrevo sobre os outros.
O que a levou a este interesse pelas histórias das Madrinhas de Guerra e avançar com a escrita deste livro tão marcante?
Sou jornalista da revista Domingo do Correio da Manhã e desde há 12 anos que todas as semanas temos uma rubrica semanal na revista que se chama ‘A Minha Guerra’, onde os ex-combatentes contam as suas histórias no Ultramar. Foi através das memórias dos ex-combatentes que me aproximei do tema – embora sempre tenha gostado muito de História – e que percebi que havia muitas histórias comoventes guardadas no baú à espera de alguém com vontade de o abrir. Em linha com este meu interesse assinei em 2019 na revista Sábado um especial sobre os primeiros soldados enviados por Salazar para Angola e na sequência disso fui convidada pela Saída de Emergência (chancela Desassossego), a minha editora, para escrever sobre as Madrinhas de Guerra. Foi um convite que veio na altura certa e pelo qual estou muito grata: graças a isso consegui dar voz às mulheres que tiveram um papel muito importante na época (e fundamental para os soldados) mas sobre as quais pouco ou nada se falava.
Ler o seu livro é testemunhar o privilégio de falar com homens e mulheres que viveram uma época em Portugal muito diferente daquela que temos hoje em dia. Qual foi o principal ou principais desafios que teve para chegar até a estas pessoas e às suas histórias?
O facto de já há muitos anos lidar com ex-combatentes tornou mais fácil chegar a eles, por um lado por saber onde os encontrar 🙂 e, por outro, por uma questão de empatia e confiança que é fundamental na relação entre entrevistador e entrevistado e que precisamente pela minha experiência na relação com eles não foi difícil de estabelecer. Outras coisas que facilitaram: A existência das redes sociais, que tornaram possível chegar a algumas das histórias, e o facto da maioria destas pessoas, e aquilo falo dos ex-combatentes mas também das madrinhas de guerra, sentir necessidade e precisar de falar sobre esta época e por isso estar predisposta a fazê-lo mesmo com alguém que não conhecia. Por isso talvez o maior desafio para mim tenha sido sobretudo encontrar um equilíbrio entre aquilo que revelava ao leitor e aquilo que deixava na intimidade dos seus protagonistas. Porque desde o início tive uma clara sensação de responsabilidade em relação aquelas pessoas e às suas histórias, e o desafio foi sempre respeitar a confiança que tiveram em mim e no meu trabalho.
Pensando em todas as partilhas que fizeram consigo e em toda a pesquisa que fez para este livro, como acha que a sociedade portuguesa actual olha os militares? São ou não acarinhados e respeitados os nossos militares como o eram na altura da Guerra Colonial e do Estado Novo?
Eu acho que o tema Guerra Colonial foi durante muitos anos um tema tabu para a sociedade portuguesa, algo que fez parte de um passado que se queria esquecer, apagar – mas a verdade é que o passado é essencial na História de um povo, de uma forma geral, e na história dos seus protagonistas, de uma forma particular. E estes homens viveram muito tempo na sombra, evitando durante muitos anos partilhar aquilo que viveram (embora sofrendo muitas vezes ainda com isso), não só por medo dos fantasmas emocionais que isso podia despertar como por receio da incompreensão das outras pessoas. Acho que isto fez com que durante muitos anos fosse um tema que se procurava evitar e que por isto a sociedade está muito distante do tema e do que estes homens passaram no auge da sua juventude. E acho também, e aí numa outra esfera, que há uma falta de apoio dos poderes políticos, nos sucessivos governos da era democrática, a esta geração que foi enviada para uma guerra que não escolheu e da qual trouxe mazelas (emocionais e físicas, dependendo dos casos) para o resto da vida.
Fala-se muito do desconhecimento que a maioria dos jovens portugueses têm da nossa História enquanto país. Que papel considera que podemos ter, enquanto presença nas redes sociais, em modificar isso e permitir levar a História até eles?
As redes sociais são veículos poderosos actualmente na divulgação dos mais variados temas e a forma mais eficaz de chegar às gerações mais jovens. Parece-me que clubes de leitura como o Leituras Descomplicadas têm aqui uma missão muito importante: por um lado entusiasmar para os livros enquanto forma de lazer, mas também de cultura e conhecimento – até porque ler é uma forma de ser livre – por outro levar às gerações mais jovens temas a que de outra forma só teriam acesso através dos livros da escola e que por esta via, menos formal, poderão ter tendência a despertar mais o interesse. É importante que as gerações mais novas não percebam a História como uma coisa que já passou, mas como uma forma de compreender como chegámos aqui e como podemos evitar erros do passado. Compreender a História é mais do que olhar para trás: é perceber quem somos e de onde viemos – porque só assim daremos passos mais firmes em relação ao que seremos e para onde iremos.
O último capítulo deste livro fala-nos de algumas madrinhas de guerra e dos seus afilhados com maior detalhe. Qual a história que mais a marcou? Como foi gerir as emoções de quem partilhava com o mundo um pouco da sua história mais íntima?
É muito difícil para mim escolher apenas uma história, porque todas estas pessoas me marcaram muito. Marcaram sobretudo pela generosidade com que me deixaram revisitar o seu passado (e todos sabemos o quanto é difícil às vezes fazê-lo), mergulhar nos seus baús de memórias (literal e metaforicamente) e fazê-los recordar um tempo em que houve grande sofrimento. Houve histórias que me comoveram, outras que me divertiram, nenhuma foi igual à anterior. A correspondência da Gertrudes e do Messias divertiu-me muito porque a certa altura já não havia filtro. Ela numa carta perguntou-lhe se ele gostava de ver uma senhora de calças e ele percebeu que ela falava de roupa interior. Então respondeu-lhe “Sim, gosto muito quando são calcinhas pequenas e rendadas e admiro muito quando são apertadinhas ao corpo”. Também me ri com a Rosa e o Mário – ele cheio de medo que o pai da madrinha lesse as cartas nunca lhe enviava beijos – e ela sempre à espera deles; com a Lúcia, que copiou uma chave do correio sem a patroa saber, para poder ver as cartas que lhe chegavam do afilhado; com o António Rodrigues que chegou a temer que a madrinha, que só lhe enviava fotografias da cintura para cima, tivesse pernas de pau (na verdade a Graça parecia-lhe boa demais para ser verdade). Mas comovi-me com o Manuel Ferreira, que sofreu uma emboscada na guerra, perdeu uma perna e temeu que a madrinha não o achasse mais o homem certo para ela; com o Fernando, que apesar da morte da madrinha Céu (com quem só casou décadas depois do regresso do Ultramar) continua a ter a casa repleta de fotografias dela. Com o António Carlos, que aproveitou o depoimento neste livro para pedir perdão a uma madrinha de guerra a quem nunca mais dissera nada. Isto para dizer que todas as histórias me marcaram de alguma maneira e todas merecem estar aqui neste livro.
E o futuro… O que podemos esperar de Marta Martins Silva enquanto jornalista, investigadora e escritora?
Enquanto jornalista continuarei a escrever sobre os diferentes temas que fizerem sentido em cada semana, seja qual for a área. Em relação à investigação e à escrita enquanto autora, agora que percebi o quanto me faz feliz acho que ninguém me para J Portanto vou continuar a escrever sobre pessoas, sobre as suas histórias, sobre o seu passado. Assim que tiver novidades mais concretas prometo partilhar com o Clube 🙂
Mal podemos esperar por saber mais sobre essas novidades! Tenho a certeza de que nos esperam mais momentos óptimos de reflexão, de partilha e de descoberta!
E ainda houve espaço para incluir as perguntas deixadas por quem está a participar no Clube Leituras descomplicadas!
Qual o capítulo que lhe deu mais gozo escrever?
Sem dúvida que o capítulo Amor em tempo de guerra foi o que mais me marcou, por ter conhecido os seus protagonistas pessoalmente e poder contar as suas histórias – foi um privilégio para mim que estas pessoas me tenham recebido para partilhar comigo o seu passado, as suas memórias e a sua intimidade e tenham tido confiança no que eu iria fazer com elas. Enquanto escrevia foi impossível não me lembrar do sorriso da Natércia enquanto me contava a sua história com o António, da dor do Fernando a recordar a Maria do Céu, da cumplicidade da Rosa e do Mário e da Gertrudes e do Messias a recordar aquele tempo. Mas tenho que confessar que o Capítulo do Movimento Nacional Feminino me deu muito gozo por um lado por poder contar a história da Cecília Supico Pinto e por outro por ter podido partilhar histórias de afilhados e madrinhas que mesmo sem chegarem ao altar marcaram profundamente quem as viveu. Mas bom, na verdade gostei de escrever todos 🙂
Imaginava-se a ser madrinha de guerra?
Completamente. Foi um papel em que me coloquei ao longo do livro: E eu? O que faria nesta situação? Retirando daqui qualquer conotação política – na verdade a maioria das madrinhas também não o fazia com esse intuito – e também romântica (tenho mais dificuldade em imaginar-me a apaixonar-me por alguém através de cartas trocadas, mas nunca saberei 🙂 ) – imagino-me a escrever longas cartas aos meus afilhados, ainda para mais sabendo que estariam numa situação em que qualquer correspondência daria alento para mais um dia.
Hoje em dia, tendo em conta a sociedade à luz dos dias de hoje, seria possível perante uma guerra existirem novamente madrinhas de guerra?
Com as devidas ressalvas e muitas aspas, os casais que hoje se conhecem através das redes sociais e que trocam mensagens escritas antes de se conhecerem pessoalmente têm pelo menos um ponto em comum com os casais que se enamoraram por carta durante a guerra do Ultramar, porque há um período de tempo nos dois casos em que se vive apenas com o eco das palavras escritas. Em relação às madrinhas, tendo elas este nome ou não, dessem apoio por carta ou através de qualquer outra forma de comunicação, penso que haveria sempre lugar para elas enquanto movimento solidário. Aquilo que me parece e tendo em conta os conflitos mais recentes a que temos assistido no mundo há organizações de voluntários que trabalham nos locais e dão apoio direto aos envolvidos – e aqui talvez se encontrem estas ‘madrinhas’ e ‘padrinhos’ presenciais.
Marta, muito obrigada pela permanente simpatia e pelas palavras tão simpáticas enviadas para o clube de leitura. Sem dúvida que “Madrinhas de Guerra” é um livro que vai ficar no nosso coração! E obrigada por nos proporcionar uma visão totalmente diferente desta fase da nossa História, nem sempre muito divulgada, mas que fez toda a diferença na vida de tantos soldados que estiveram nas Guerra do Ultramar, na das jovens que foram madrinhas de guerra e em todos os portugueses!
Júlio Nuno Quintas Silva Ferros
Olá Marta, gosto muito de te ouvir, ainda não comprei o teu livro, mas vou comprar, admiro imenso a coragem de uma mulher com a tua idade a falar de um tema tabu como a guerra colonial. Um grande abraço de um ex-combatente.
SandraCC
Obrigada pelo seu gentil comentário. Felizmente que temos pessoas com a Marta Martins Silva que não deixa esquecer quem se sacrificou pela Pátria em terreno de guerra. Grata pelo seu contributo e por ter vestido a farda de um dos ramos das nossas Forças Armadas. Uma sociedade deve ser sempre profundamente grata aos seus militares, ainda mais quando se fala de um ex-combatente. Obrigada!