“O lugar das árvores tristes”: Mergulhar no Alentejo do meu coração

“O lugar das árvores tristes” é o romance de estreia de Lénia Rufino. Neste livro, somos transportados até um lugarejo do Alentejo (mas que podia ficar em qualquer local de Portugal) e ficamos a conhecer Isabel e a sua mãe Lurdes, numa história repartida entre 1992 e as décadas de 1960 e 1970 do século XX. Isabel é dona de sonhos e inteligência maiores que as fronteiras do lugarejo onde vive, olhando o seu tempo de forma peculiar. Deambula pelo cemitério da sua aldeia, descobrindo farrapos de passado das famílias que a rodeiam e até mesmo da sua… Mesmo que o presente lhe queira impedir de descobrir tudo aquilo que deseja. A ausência de medo dos mortos permite-lhe pressentir os segredos escondidos em cada talhão do cemitério que visita escondida dos olhos dos demais. Até que um segredo que parece espreitar de um desses talhões, qual mão de um esqueleto que se escapa de uma sepultura num qualquer filme de Halloween, a marca mais que os restantes…

 

“O lugar das árvores tristes”: O que vais encontrar neste livro?

Esta é uma daquelas histórias que, facilmente, nos transporta para as recordações que possamos ter de férias passadas em casa da avó. Esta é a sua sinopse:

Isabel não tinha medo dos mortos. Gostava de passear por entre as campas do cemitério, a recuperar as histórias da morte daquelas pessoas. Quando a falta de alguma informação lhe acicatava a curiosidade, perguntava à mãe… Quando esta se recusa a dar-lhe uma resposta sobre uma mulher chamada Eulália, Isabel inicia uma busca por esclarecimentos. Só que ninguém quer falar sobre o assunto e, inesperadamente, Isabel vê-se confrontada com uma teia de mentiras, maldade, enganos e crimes que a levam a compreender o passado misterioso da mãe e a forma quase anestesiada da sua existência. Um romance de estreia profundamente sagaz e envolvente que faz um retrato do interior português preso na tradição religiosa da década de 1970.

O ponto de partida para este “O lugar das árvores tristes” é a recusa de Lurdes contar à sua filha sobre a morte de Eulália. Estão a ver uma daquelas velhotas que existe em qualquer lugarejo, mais ou menos perdido, e que tem o condão de estar presente no local certo à hora errada?! Essa é Eulália! O não contar dos motivos de morte de Eulália despertou em Isabel uma vontade ainda maior de conhecer esse segredo e de explorar as velhas arcas arrumadas no sótão… Entre o pó e as páginas amarelecidas de vários diários, Isabel vai descobrir mais do que os motivos da morte de Eulália. Vai descobrir quem são estas árvores tristes, perdidas do seu rumo de vida naquele lugarejo alentejano, e vai também descobrir um objectivo maior para a sua própria existência. Na pág. 87 pode ler-se: “Por isso, quando se viu sem nada, sentiu-se uma árvore despida, incapaz de cumprir os mínimos que garantissem que continuaria viva“. Seria também Lurdes uma das árvores perdidas num lugarejo perdido no norte do Alentejo?

 

“O lugar das árvores tristes”: O senti ao ler este livro?

Lénia Rufino presenteia-nos com uma escrita fácil de acompanhar e fluída que tem a capacidade de nos envolver. Ainda mais se tivermos no nosso passado elementos familiares ou da nossa infância que facilmente nos fazem cair dentro das páginas do livro por nos serem tão próximos. Tendo eu raízes familiares no Alentejo, num lugarejo não tão pequeno assim como aquele que é descrito neste livro, facilmente consegui reconhecer os vários elementos que vão surgindo. A vida dura, dedicada de sol a sol à agricultura e ao cuidado dos animais, relegando para segundo plano o tempo em família. A taberna da esquina onde os homens se juntam antes do jantar, em torno de um balcão e de umas garrafas de cerveja e onde se deitam contas à vida e à jorna que se recebeu. As famílias de relações cortadas para sempre, nem sempre pelos motivos mais justificados (“Naquela família, as quezílias resolviam-se de uma de duas formas: ou à pancada, quando era entre homens, ou cortando relações, se estavam envolvidas mulheres” pág. 172). Os funerais que, mais do que mera homenagem a quem parte, se revelam como momentos centrais da vida social dos lugarejos perdidos de Portugal e que nos mostram mais sobre aqueles que vivem sobre o que parte e está no meio da sala dentro de um caixão. “Há, nos funerais, um resquício de maldade que é impossível conter. Ali não era diferente. O cinismo chegava sempre a horas a estes eventos” (pág. 146). Tudo isto envolvido pelo cante alentejano que nos aquece a alma. E a tudo isto assisti durante as minhas férias de verão no Alentejo da minha infância…

A maior parte da narrativa ocorre durante os últimos anos desse Estado Novo, com a clara preponderância do clero sobre as demais classes sociais. Confesso que, neste ponto, não consegui tanto identificar o Alentejo que eu conheço… Mas talvez porque o padre do lugarejo da minha infância fosse muito menos impositivo, cruel e aglutinador do que aquele personificado pelo Padre Alípio deste livro. “Cabia-lhe a si, enquanto homem, garantir que chegava ao fim da vida sem mácula pública, continuando a ser visto como um homem exemplar que sempre conduzira as almas do seu rebanho de forma impoluta” (pág. 205). No entanto, consegue-se perfeitamente identificar o elo central da Igreja, partindo da cúpula maior do Cardeal Cerejeira e desdobrando-se em cada um dos níveis da Igreja até à paróquia da aldeia, onde o padre era mais rei e senhor do que mero conselheiro espiritual.

Temos igualmente um mero vislumbre do que era ser da “família rica da terra” (pelo menos, senti isso na descrição dos episódios da adolescente Lurdes…) e o que isso podia significar se algum erro fosse cometido… Os pilares da religião e do dinheiro durante o Estado Novo marcaram a vida de Lurdes da pior forma possível… E ao ler a sua história, ainda que ficcionada, pergunto-me quantas Lurdes e quantos João existiram na narrativa do povo português subjugado aos brandos costumes sem capacidade de levantar a voz perante uma clara injustiça, tudo em nome de uma honra ainda imbuída de espírito medieval e que, dramaticamente, sempre condicionou tantas vidas do nosso Portugal. Mas vemos como o papel dessa Igreja castradora pode ter sido também a origem de tantos se afastarem dela: “Não teria de se vergar perante uma igreja que punha nas vítimas o ónus da culpa. E se antes já era pouco crente, agora ainda menos” (pág. 127).

A forma crua e atroz como Lénia descreve os desejos do padre Alípio são verdadeiramente a fotografia da culpa que sempre se atribuiu (e ainda se atribui tantas vezes, no presente….) às mulheres, qual epíteto máximo da culpabilidade da mulher quanto ao despertar desejo no homem e ser culpada de tudo aquilo que lhe poderia acontecer. “Puseste-te a jeito” como tantas vezes ouvimos e lemos… “Não sabia como a sobrinha tinha engravidado, mas havia de ser, com certeza, culpa dela, ingénua e até um pouco palerma, que não sabia defender-se e que teria certamente provocado quem quer que lhe tivesse plantado o filho no ventre” (pág. 87). Aquela capacidade de crueldade atroz e de preconceito que tantas vezes vemos materializado da pior forma de mulheres em relação a mulheres. Mas curioso ver como o tio de Lurdes, Eusébio, conseguia ser um homem à frente do seu tempo: “Abstinha-se, por isso, de tecer considerações e não guardava para a sobrinha todas as culpas – longe ia já o tempo em que acreditava que tanta vontade era apenas fruto da sedução feminina” (pág. 87).

A descrição entrecortada de um suposto abuso que vem a culminar numa gravidez indesejada, com a atrocidade de ocorrer no profundo do nosso Portugal de raízes profundamente católicas embrenhadas nos braços do Estado Novo e nos princípios requeridos a todas as raparigas consideradas de bem, montras maiores das regras prescritas pela Mocidade Portuguesa Feminina. Escrevia-se no Boletim da Mocidade Portuguesa Feminina de 1940: “Raparigas da Mocidade, o vosso dever é reagir contra tudo o que é mau. Vesti com orgulho o fato de banho da Mocidade: ele fala por vós e diz aos que vos vêem quem vós sois: verdadeiras raparigas alegres e saudáveis – mas puras!“. O objetivo maior de todas as raparigas era o seguinte: boa esposa, boa mãe, boa doméstica, boa cristã, boa cidadã sempre pronta a contribuir para o Bem comum, mas sempre longe da intervenção política deixada aos homens. E, ainda que não se fale da Mocidade Portuguesa Feminina no livro, tudo aquilo vociferado pelo padre Alípio materializa toda esta mensagem. Sem dúvida, uma narrativa que prende quem leia este livro e que mergulha nos hábitos e nas raízes religiosas do nosso Portugal e que nos mostra o quanto, ainda hoje, essas raízes são ainda demasiado fortes e continuam a moldar o pensamento, a educação e o preconceito de uma sociedade que se quereria, supostamente, bem mais avançado do que podemos pensar que somos.

O livro termina dizendo que “Puxou o portão, que chiou pela falta de óleo nas dobradiças, deu duas voltas à chave e olhou uma última vez para aquelas árvores altas cujas sombras desciam já sobre as campas numa despedida sua e de final de tarde“. Teremos um livro seguinte a este?!

Seja no passado ou no presente, que possa este livro trazer para cima da mesa a reflexão sobre os comportamentos que se tem face a uma mulher violada, as palavras cruéis que demasiadas vezes lhes são dirigidas como se tivesse tido culpa do que se passou, os preconceitos impostos pela educação e pela sociedade e que podem moldar ou cortar para sempre o rumo de uma vida. Gostei muito de ler este livro de escrita bastante fluída e sem termos demasiados complexos ou desconhecidos da maioria. Lénia se quisesse, poderia ter mergulhado profundamente nas expressões desse Alentejo, tornando-o mais inalcançável para a maioria. Mas, e bem, preferiu manter as expressões no vocabulário de todos, sem que se impusesse ir à da vizinha, fazer um mandado, não apoquentar os mais velhos ou não ter avondo com o turbilhão de sentimentos que deve ter sido mergulhar nas raízes de uma infância para as colocar por escrito, ainda que de forma ficcionada.

 

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“O lugar das árvores tristes”: O Resumo Da Minha Opinião

  • A escrita fluída da Lénia, escrita com elevado grau de proximidade, torna a nossa leitura bastante fácil e ajuda a que não se queira deixar o livro até saber toda a história.
  • Descrever uma região tão especial como o Alentejo e que me diz tanto do ponto de vista dos meus laços familiares, tornou este livro uma leitura obrigatória e fez-me recuar uns bons anos até eu mesma estar defronte do cemitério da aldeia com mil e uma perguntas por fazer…
  • A forma como está descrito um dos tremas principais da narrativa fez-me arrepiar por ser uma realidade tão minha conhecida e por perceber que, seja a norte ou a sul, o sangue que corre nas veias destes lugarejos é profundamente marcado pela identidade de um povo claramente marcado pelas cicatrizes que um Estado Novo nos deixou…
  • A capa desta edição está muito bem conseguida, não sendo na cor habitual de uma árvore triste, mas antes num cinza cor de mistério, de segredos, pincelado de azul de tristeza de acontecimentos familiares por resolver… Também o tipo e tamanho de letra, destaco como aspectos positivos da edição, porque facilitam bastante a leitura e a tornam muito agradável.

 

Detalhes Do Livro:

Título: O lugar das árvores tristes

Autor: Lénia Rufino

Editora e data de publicação: Manuscrito Editora, Março de 2021

Encadernação: capa mole

Páginas: 224

Classificação temática: Literatura – Policial e Thriller

Classificação Goodreads: 4,39

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