“A dança das estrelas”: O brilhante regresso de Emma Donobghue

Trigger warnings: perda neonatal/aborto, doença mental/stress pós-traumático.
“A dança das estrelas” é o mais recente romance de Emma Donoghue e promete não deixar ninguém indiferente. Conhecida dos portugueses com romances como “O quarto de Jack” ou “O prodígio”, o primeiro foi bestseller internacional finalista do prémio Man Booker Prize, Commonwealth e Orange Prizes. A escrita do argumento de adaptação de “O quarto de Jack” ao cinema foi da responsabilidade de Emma, tendo sido nomeada nomeada para o Óscar de melhor adaptação de argumento original. E o que nos traz este novo livro?!
“A dança das estrelas”: Dublin, Gripe Espanhola e Julia Power
“A dança das estrelas” transporta-nos para uma Dublin, em 1918, a lidar com os homens regressados da Primeira Guerra Mundial profundamente alterados pela guerra das trincheiras. A personagem de Tim, irmão de Julia Power que não fala desde o seu regresso a casa da guerra, materializa a descrição do stress pós-traumático vivido depois de se estar na linha da frente de um conflito. É também uma Dublin a lutar contra a pandemia da Gripe Espanhola. Esta foi uma pandemia extremamente mortal do vírus Influenza que, no espaço de um ano em 1918, dizimou milhões de vidas em todo no mundo. No caso particular do efeito mortífero do vírus H1N1 na Europa, os verdadeiros números dos afetados por esta pandemia foram bastante silenciados nos países onde se travava o primeiro grande conflito a nível mundial, tudo em nome de não se espalhar a desmotivação entre as pessoas à mesma velocidade que se espalhava o vírus. À época, a gripe espanhola afectou enormemente os mais novos e os mais velhos.
“Esta gripe nada tem a ver com a maldição sazonal, tristemente familiar, que costuma levar apenas os mais idosos e os mais fracos. (…) Esta gripe nova é uma maldição misteriosa, que ceifa homens e mulheres em pleno viço da sua juventude” (pág. 45).
O livro desenrola-se num hospital de Dublin e acompanhamos dois ou três dias na vida da enfermeira parteira Julia Power e a sua luta em conseguir que as pacientes internadas na sala de Infecciosas/Maternidade sobrevivam e tenham os seus bebés em segurança. Toda a história se desenrola em torno desta personagem feminina e de mais duas: Birdie Sweeney, uma voluntária que ajuda Julia na enfermeira, e Dra. Kathleen Lynn (vê, neste link, a exposição que celebrou a vida desta sufragista). Esta última trata-se de uma personagem verdadeira que viveu entre 1874 e 1955 e que foi vice-presidente do Sinn Féin, um dos movimentos políticos mais antigos da Irlanda, materializando a resistência face ao domínio britânico. Vemos o quanto esta mulher poderia estar à frente do seu tempo, enquanto médica, ao realizar autópsias em grávidas que morriam (como Mrs. Noonan) e do efeito que a gripe teria no seu organismo, ao querer fazer um postmortem no seu corpo. Verdade ou ficção, penso que pela descrição feita desta médica, isto seria algo que faria todo o sentido e que materializaria o relevante contributo que as mulheres sempre tiveram para o avanço da ciência. E, também, a oposição que sempre receberam dos homens por isso:
“Há uns anos, foi-me oferecida uma posição – acrescente ela -, mas os médicos homens contestaram o convite perante a perspectiva de terem de lidar com uma colega de saiais, ainda para mais contestatária” (pág. 148).
“A dança das estrelas”: O que senti com esta leitura?
Ao longo do livro, não pude deixar de ficar arrepiada com as semelhanças entre essa época e a que vivemos nos dias de hoje:
“Hoje em dia, faz mais frio dentro do hospital do que na rua: as lâmpadas mantêm-se quase sempre desligadas e o carvão dos fornos é racionado. A cada semana chegam mais casos de gripe Às nossas enfermarias, as camas escasseiam a olhos vistos. (…) Qualquer funcionário que se sinta mal desaparece num abrir e fechar de olhos, qual peão num tabuleiro de xadrez. As restantes de nós resignam-se, trabalhando mais e mais, mais céleres, mais solícitas, dando mais de nós, o máximo que temos para dar – mas que não é suficiente. Esta gripe está a afundar tudo e todos no hospital” (pág. 17)
Assustadora realidade com os relatos de muitos profissionais de saúde que temos ouvido na televisão, não é verdade?!
E como eram as escolas da altura? Também encerradas por causa da pandemia:
“Pedalo pelos portões agrilhoados de uma escola, onde um cartaz recém-pintado anuncia: encerrada por tempo indeterminado por ordem da direção de saúde. Penso nos jovens Noonan; se hoje em dia as crianças dos bairros desfavorecidos não forem à escoa, ficam igualmente sem a única refeição quente do dia” (pág. 174).
Assustadoramente semelhante à realidade de tantas crianças no nosso país passado mais de um século e implantados no meio da modernidade do século XXI…
Poder-se-ia pensar que o livro se iria centrar somente na gripe espanhola mas, a meu ver, materializa mais o foco no que era ter um filho no início do século XX, sem grandes condições de higiene e no meio de uma pandemia. Mostra o foco e a resiliência que os profissionais de saúde necessitavam de ter numa época em que ainda poucas ajudas tecnológicas existam para acompanhar uma gravidez e em que ainda se deixava muito nas mãos de Deus. Vê-se também como eram as orientações técnicas da altura: “Uma parteira não deve jamais arriscar a remoção manual da placenta, salvo se todos os outros meios de cessar a hemorragia se tenham revelado infrutíferos e se não estiver presente um médico credenciado pada realizar o procedimento” (pág. 94), sobre a necessidade imperativa que Julia Power sentiu em ter de retirar a placenta de Mrs. Garret, sob risco desta mulher falecer no decorrer do parto (que já bastava ter-se materializado na perda do seu bebé, um nado-morto…). Ao longo do livro, sentimos também uma profunda homenagem aos profissionais de saúde.
“Eis-nos perante a era dourada da medicina: logrando tamanhos avanços na luta contra a raiva, a febre tifóide, a difteria, e é a influenza comum que nos destrói. São vocês, enfermeiras, o que há de mais crucial neste momento, profissionais sensíveis e atentas. Ou seja, cuidado, carinho e afeição parecem ser o que, afinal de contas, anda a salvar vidas actualmente” (pág. 153).
E este livro materializa também a descoberta do amor onde menos se espera, da forma que menos se espera e com quem menos se espera. A incerteza que a vida possui associada, mostrando o tão pouco que nós conseguimos controlar dessa vida, ainda que achemos que podemos ser verdadeiros control freaks com todas as rédeas de uma vida que se nos pode escapar facilmente entre os dedos…
E que significado tem o título de “A dança das estrelas”? Para mim, três significados essenciais podem ter levado Emma Donoghue a dar este título. Primeiro, a referência clara ao vírus Influenza. “– Podemos sempre culpar as estrelas… – Perdão? – É isso que significa influenza – diz-me ela. – Influenza delle stelle, influência das estrelas. Os italianos da Idade Média acreditavam que a doença representava a prova de que eram os céus que controlavam os seus destinos, que as pessoas eram literalmente comandadas pelas estrelas” (pág. 153). Depois, a referência aos bebés stargazers, que conhecemos no parto do bebé de Mrs. White. “E muitos bebés stargazers saem por si sós. (…) Bebés que nascem com a cabeça para cima, a olhar para o céu” (pág. 222). Por último, a dança das estrelas que foi testemunha da descoberta do amor de Julia Power e que ficará sempre indelevelmente marcada na sua memória.
Gostei muito deste livro e da forma envolvente com que Emma Donoghue nos transportou até à Dublin assombrada pela mudança de cor de “vermelho para castanho para azul para preto“. A forma, por vezes gráfica, como nos descreveu o trabalho de perto e os procedimentos médicos da época, tornando a narrativa muito rica e muito mais real. Um livro que nos ajuda a refletir sobre a forma como a história do mundo dá voltas sobre si mesma e se repete de tempos a tempos, colocando à prova toda a humanidade. Gostei também do destaque dado à personalidade de Kathleen Lynn e à relevância que as mulheres sempre tiveram ao longo dos tempos na Medicina e nas Ciências. E, sem dúvida, o grande papel de destaque dado a uma enfermeira que, durante todo o livro, foi quebrando todas as regras necessárias para salvar vidas e o seu coração. Um livro extraordinário e que justifica muito bem o valor da escrita de Emma Dononghue.
Curiosidades sobre a Gripe Espanhola e sobre o livro
Desde o ano passado que o termo pandemia entrou nas nossas vidas e ganhou um significado muito mais próximo. Para teres uma comparação com outra pandemia vivida no passado, deixo-te aqui algumas curiosidades sobre a pandemia de Gripe Espanhola:
– A gripe espanhola foi a primeira pandemia causada pelo vírus H1N1, tendo a segunda ocorrido em 2009;
– Os efeitos de mortalidade e contaminação do vírus foram grandemente maximizados pelas deficientes condições de nutrição, de salubridade e de hospitais e profissionais de saúde disponíveis, muito fruto da Primeira Guerra Mundial que terminaria no final desse ano de 1918;
– Existem estudos médicos que dizem que este vírus desencadeava um grande enfraquecimento do sistema imunitário e que seria esse o responsável pela morte dos mais jovens e que seriam as fracas condições nos hospitais que conduziriam à disseminação de infecções causadoras da elevada mortalidade nesses locais.
Mas “A dança das estrelas” tem uma interessante curiosidade associada a ele… Emma Donoghue começou a escrever este livro sobre a gripe espanhola em 2018, ano do centenário desta pandemia, e cerca de dois anos antes de termos os primeiros casos da pandemia de COVID-19. O primeiro rascunho foi entregue em Março de 2020 e a editora, vendo as assustadoras semelhanças com o que se estava a viver em todo o mundo, acelerou o processo de publicação deste livro e, assim, nos chega às mãos um livro que nos mostra ecos do que vivemos actualmente.
“A dança das estrelas”: O Resumo Da Minha Opinião
O que mais gostei neste livro?
- Toda a narrativa girar em torno de mulheres: Julia, Birdie e Kahtleen.
- A descrição, por vezes bastante gráfica, de toda a realidade médica da altura, que nos faz compreender a forma como a Medicina conseguiu evoluir no espaço de um século.
- A consciência da luta que as mulheres tiveram de travar (e continuam a travar) para igualdade no local de trabalho e por oportunidades de desenvolvimento.
- A assustadora consciência de que as pandemias e tudo no nosso mundo é cíclico e que o passado pode colidir com o nosso presente de forma assustadora.
- A escrita de Emma Donoghue que tem a capacidade maravilhosa de nos prender à leitura e ao livro sem nos querer fazer largar.
O que menos gostei neste livro?
- Sem dar grandes spoilers para quem ainda não leu… Gostava que a personagem de Birdie pudesse tewr sido um pouco mais desenvolvida do que surge apenas na parte final do livro.
Detalhes Do Livro:
Título: A dança das estrelas (no original: The pull of the stars)
Autor: Emma Donoghue
Editora e data de publicação: Porto Editora, Março de 2021
Encadernação: capa mole
Páginas: 304
Classificação temática: Literatura – Romance
Classificação Goodreads: 4,00
Este é um livro que podes ler para o desafio de leitura “Escolhe o teu livro” na categoria “Um livro editado em 2021” e para o “Ler é respeitar a história” na categoria “Um romance histórico”.
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