“As falsas memória de Manoel Luz”: Um livro a que é impossível ficar indiferente!
Trigger warnings: doença mental, saúde mental.
“As falsas memórias de Manoel Luz” é o primeiro livro que leio de Marlene Ferraz e que foi o livro do mês de Março do clube de leitura com o tema “A mulher na literatura”. Este livro foi uma sugestão da Ana do bookstagram “Intermitências de uma leitora” que tem um projecto chamado #portuguesnofeminino. Marlene Ferraz, nascida em 1979, uma psicóloga que se tem vindo a dedicar à escrita possui já um conjunto de livros merecedores de prémios a nível nacional: “Na terra dos homens” (Prémio Miguel Torga 2008), “O amargo das laranjas” (Prémio Florêncio Terra 2008), “O tempo do Senhor Blume e outros contos” (Prémio Afonso Duarte 2012). O seu romance de estreia foi “A vida inútil de José Homem” (Prémio Agustina Bessa Luís 2012), a que se seguiu este sobre a vida de Manoel Luz (finalista do Grande Prémio de Romance e Novela da APE 2017). Possui ainda um livro infantil, que já mora cá em casa e de que falarei em breve, “O elefante com o coração na lua”, editado em 2019.
Manoel Luz: O que nos espera neste livro?
“Na tua cabeça, a vontade de escrever a minha biografia, Hélio. Repara nas memórias tão falsas da minha vida. Confesso que nem sei como voltar a etiquetar cada minuto de que me lembro do meu passado. Pai de corpo. Pai de coração. Pai nenhum. Como Papoila” (pág. 313).
E quem é este Manoel Luz? Este romance tem uma sinopse que nos capta a atenção desde o primeiro momento:
“Após a morte de um grande editor, Manoel Luz, também ele um homem dos livros, é confrontado com inesperados segredos que o obrigam a suspeitar da verdade e a recompor a sua narrativa de vida com tantos desacertos e acasos. Depois da revolução de Abril, também o livreiro começa uma inevitável renovação na matéria mais íntima. O encontro inexplicável com a rapariga estrangeira, a filha imprevista com nome de flor bravia e o rapaz louco acompanham Manoel Luz nesta revelação de uma realidade improvável, mais deformada e duvidosa mas compensada pela amplitude da afeição”.
Mas, apesar desta sinopse que nos desperta a curiosidade, nada nos consegue preparar para a narrativa poética e de diversas camadas com que Marlene nos brinda neste seu livro. A história faz-nos divagar entre o Estado Novo da infância de Manoel Luz e um presente algures próximo do final do século XX. Três homens deambulam por estas páginas carregadas de segredos: Manoel Luz, o editor Senhor Prudente e o homem pai floreiro, dicotomias de um mesmo mundo entre as quais Manoel se perde nos caminhos da ignorância e a da inocência sobre os factos da sua vida e daqueles que os rodeiam. Gostei particularmente da forma como Marlene nos foi falando de realidades do Estado Novo que, a muitos de nós e nos dias de hoje, nos fazem confusão de tão estranhas que nos parecem.
“A propaganda estadista era tanta que apetecia apontar o dedo, aprontar o corpo, morder os dentes, mas o homem floreiro podava a língua por amor ao rapaz que se ampliava na palma das suas mãos. Tiveram o general aviador que se levantou ao presidente, com um sopro de esperança a evaporar-se do privado tão limpo, mas todos sabiam da escutas e emboscadas do regime para que o homem falador de liberdade caísse morto” (pág. 68)
“O país habituou-se durante largo período a ser conduzido por um homem de génio; de hoje para diante tem de adaptar-se ao governo de homens como os outros” (pág. 93).
Como romance que são estas falsas memórias, fala-se de amor nas suas diversas dimensões e que se materializam na devoção, carinho e entrega do homem floreiro pai a Manoel: “O amor complica o entendimento, pai.
O homem pai abanou a cabeça. Não, Manoel. O amor é que, para ampliar-se, precisa que sejamos mais simples” (pág. 150). Homem feito de simplicidades, de pés assentes na terra de um canteiro de jacintos em flor, este homem floreiro é uma personagem terna, que nos aquece o coração durante todo o livro, mesmo depois de partir em direção a um jardim diferente… Por outro lado, temos o Senhor Prudente, homem a venerar outro numa cadeira de poder, e que se move nos meandros do poder do Estado Novo, pondo e dispondo das vidas dos que o rodeiam e que faz levantar a orelha a Manoel Luz. “Soube, depois, que Laura tinha nas veias a seiva e o apelido dum capitão de abril, cabeça também do plano operacional do Movimento das Forças Armadas e Secretário de Estado nos governos provisórios da futuridade. Sabia, também, das suposições políticas do grande editor e da gravidade dum envolvimento controverso no seu processo de aumento da revolução” (pág. 195). Mas sem que isso se acabe por refletir por uma mudança na admiração que tem por ele… Mas será que isso o torna intrinsecamente mau? Convida-nos o homem floreiro pai a uma reflexão: “Todas as criaturas têm um interior limpo, filho. É o mundo por onde andam que pode conspurcar as privacidades. Não vejas os homens ruins como malditos. Mas condenados” (pág. 249). Este editor dono da Bem Comum é a materialização do Estado Novo aglutinador de liberdade, defensor de uma honra mais ou menos corrompida e de vidas escondidas por detrás de uma cortina de mundo ideal.
Manoel Luz: O turbilhão de emoções que senti nesta leitura
Mas Manoel Luz cresce, apaixona-se e passa a olhar a vida de uma outra forma. Conhece Laura, o seu amor maior de uma vida. E de uma forma extraordinariamente poética, vemos como podem existir diversos pais, em função daquilo que dão a uma criança: o pai de corpo e o pai de coração. O carinho que se ganha por Manoel Luz ao longo de todo o livro torna-o muito especial. Enquanto lia as maravilhosas palavras da prosa de Marlene Ferraz, conseguia ver uma dimensão de carinho crescer por Manoel Luz e pelo seu pai floreiro na mesma dimensão que criei aquela ligação especial com o Formiga, de “Onde cantam os grilos” de Maria Isaac. São estas personagens e esta poesia na prosa que precisamos nos nossos autores portugueses. São estas personagens especiais que precisamos para uma ligação linda e profunda aos livros e à leitura. E Marlene Ferraz proporciona-nos isso, de forma extraordinária, com estas falsas memórias. Que livro especial este! E que melhor cereja no topo do bolo do que versos de Fernando Pessoa a completar este cenário idílico de narrativa poética que tanta falta me fazia ler?!
Não posso deixar de fazer menção à forma como é tratada a doença mental, materializada na personagem de Hélio, esse rapaz escritor de biografias que torna um palacete abandonado na casa maior das suas histórias, bem como na mãe de Manoel, Aurora, mulher encerrada entre as quatro paredes que apenas a partida de um filho pode proporcionar. Posso mesmo dizer que senti breves arrepios na descrição deste espaço e das divagações deste Hélio por quem Manoel Luz criou um profundo carinho…
“O mesmo animal bravio que nos seduz numa caixa televisiva causa um medo abafadiço se a um metro do nosso corpo. A distância é fundamental à lucidez. Apontado a lápis num ensaio inacabado sobre os males da vista” (pág. 265)
“A razão está claramente doente: desengane-se o homem que acredita na salvação pelo raciocínio. A verdade é um lugar improvável. A todos os que se perdem sem ter verdades na língua, falem das falsidades nas memórias e declarações. A falsidade é uma verdade muito mais simples de ser provada” (pág. 302)
“A loucura, bem longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana” (pág. 254).
Essencial que se deixe de ver a doença e a saúde mental como tabus de uma sociedade completamente só no meio da multidão. Parabéns à autora por nos trazer esta referência neste romance. Simplesmente, adorei este livro. As palavras são insuficientes para se descrever o que se sente ao terminar “As falsas memórias de Manoel Luz”. Apenas um pensamento presente: voltar a ler Marlene Ferraz muito em breve! Simplesmente, um dos meus livros preferidos deste ano até ao momento 🙂
“As falsas memórias de Manoel Luz”: O Resumo Da Minha Opinião
O que mais gostei neste livro?
- A escrita extraordinariamente poética de Marlene Ferraz que nos embala e nos envolve como um abraço forte e carregado de emoção;
- A possibilidade de conhecer perspectivas sobre a realidade do Estado Novo, ainda que de forma leve e sem grande incidências nas experiências mais dramáticas dessa época;
- A capa absolutamente linda e que apaixona qualquer pessoa, acho que facilmente se compra este livro pela sua capa;
- O tamanho e tipo de letra e a formatação da edição torna a leitura fluída e não dificulta o desenrolar da leitura.
O que menos gostei neste livro?
- Senti que a parte sobre o Hélio e o seu mundo especial no palacete foi apresentada quase como um turbilhão e senti-me, algumas vezes, um pouco perdida… Mas terá sido isso propositado para refletir o turbilhão da mente desta personagem?
Detalhes Do Livro:
Título: As falsas memórias de Manoel Luz
Autor: Marlene Ferraz
Editora: Editora Minotauro
Encadernação: capa mole
Páginas: 352
Classificação temática: Literatura – Romance
Classificação Goodreads: 4,09
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