Uma vida adiada: Um olhar sobre a vida de Dita Kraus

Hoje trago-te a minha opinião sobre o livro de Dita Kraus, “Uma vida adiada. Memórias da bibliotecária de Auschwitz”, que foi o livro do mês de Janeiro do clube de leitura aqui do estaminé. Este é um livro de memória de Dita Kraus sobre a sua vida antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial e que foi o livro escolhido para assinalar o Dia em Memória das Vítimas do Holocausto. Um livro que nos traz um olhar diferente sobre a vida de sobreviventes de um campo de concentração e que não se esgota com a libertação. Gostei bastante deste olhar sobre a vida de Dita Kraus e a forma como ela nos explica que a sua vida foi ficando adiada… Até aos 89 anos, altura em que nos escreve sobre a sua vida, a sua família e o seu amor. Vamos conhecer um pouco mais sobre este livro?
Uma vida adiada: Quem é a bibliotecária de Auschwitz?
“Uma vida adiada” conta-nos a história de vida de Dita Kraus, a jovem bibliotecária de Auschwitz e uma das mais novas sobreviventes desse terrível campo de concentração. Este livro transporta-nos para a cidade de Praga e começamos por saber um pouco mais sobre a infância de Dita nesta cidade e como era a vida da sua família antes da ocupação nazi. Ficamos a conhecer as suas amizades, os seus primeiros amores e os primeiros sinais de que a guerra estava a chegar com as deportações, como aconteceu com a sua amiga Annemarie que foi levada para o gueto de Lodz juntamente com a sua família. É, neste momento, que temos o primeiro vislumbre da importância que os livros poderão ter na vida de Dita, quando Annemarie lhe diz que pode levar todos os livros que quiser já que ela os terá de deixar para trás por causa da deportação. E temos a primeira reflexão de Dita sobre como a sua vida iria mudar em breve para sempre:
“Escolhi um que tinha lido várias vezes, um romance para raparigas, pateta e sentimental. Mas ao levá-lo já sabia que em breve também eu o deixaria para trás, juntamente com os meus próprios livros e brinquedos, quando chegasse a nossa vez de sermos deportados”
Dita escreve as memórias presentes neste livro aos 89 anos com uma clareza que parece impossível para qualquer um de nós. Acho que o facto do foco do livro não ser a realidade dos guetos e campos de concentração por onde passou (Terezín, Auschwitz e Bergen-Belsen), torna o relato desta sobrevivente ainda mais especial. É com ela que sabemos um pouco mais sobre a forma como os judeus foram tratados em Praga e como aconteceram as suas deportações. Por exemplo, conhecemos a história dos tios de Dita, Ludvík e Manya. Ele judeu, ela gentia. Casados, viram-se forçados a uma decisão das mais duras que se pode tomar: decidiram divorciar-se apenas pensando que, assim, seria possível Ludvík salvar-se. Mas não poderiam estra mais errados… Ele acabou por ser um dos primeiros deportados para um campo de concentração, ao contrário de tantos outros esposos judeus de gentios que conseguiram permanecer junto das suas famílias até quase ao final da guerra e sobreviver. Ao contrário de Ludvík… Faleceu pouco tempo depois de ter sido deportado…
Dita descreve-nos como continuou a frequentar a escola e esse era um dos poucos momentos felizes e de normalidade que conseguia ter durante a guerra e o medo que a assolava, por si e pelos seus, todos os dias desde a ocupação nazi de Praga. Até que chega o dia da deportação e Auschwitz-Birkenau, Campo BIIb se torna a sua nova casa… É aí que podemos assistir a descrições bastante gráficas do que era a realidade deste campo. Daquelas que são capazes de nos revolver as entranhas e nos sentir impotência por tantas vidas terem sido levadas desta forma, nesta máquina infernal de morte e de segregação humana. O capítulo 13, Latrina, é provavelmente um dos que mais revolta ler e que nos mostra as condições inimagináveis que estes milhares de pessoas viveram neste campos de concentração. É também na linguagem simples e directa de Dita que ficamos a conhecer um pouco mais sobre o papel dos Kapos, da forma como a vida se esvaia dos corpos dos prisioneiros e de como, a cada chamada, um pouco mais da Humanidade morria nas paradas dos vários campos de concentração existentes por toda a Europa.
Uma vida adiada: O que mais me marcou neste livro?
Uma das partes que mais me cativou foi a que envolveu a sua libertação de Dita e que a levou, primeiro, até Hamburgo e depois Bergen-Belsen, o relato intenso sobre a morte da sua mãe, o seu regresso a Praga, e que terminou com o seu casamento com Otto Kraus, também sobrevivente de Auschwitz, escritor checo do livro “O bloco das crianças” (romance histórico autobiográfico que relata a história de Alex Ehren, poeta, prisioneiro e professor no bloco 31 de Auschwitz-Birkenau, o bloco das crianças e que escreve um diário… Que, na realidade, corresponde ao romance autobiográfico de Otto e que conta a história das crianças judias que viveram nesse bloco entre 1943 e 1944).
A nova realidade política que assolou a Checoslováquia no pós-Segunda Guerra Mundial empurrou Dita e Otto para longe da sua Praga natal, levando-os até Israel e a uma realidade que, provavelmente, nenhum deles esperava encontrar. Em particular Dita… Como disse antes, foi mesmo esta parte do livro que mais me marcou. Habitualmente, os livros de sobreviventes do Holocausto centram-se muito na sua passagem pelos campos de concentração, pelas suas provações e pela sua libertação, parecendo terminar demasiado abruptamente com o final da guerra. Esta história de vida de Dita Kraus destaca-se precisamente por este mundo novo que nos dá a conhecer, em terras de Israel e nos meandros dos kibutz que nos faz refletir sobre o caminho dos sobreviventes do Holocausto, não totalmente desprovido de dificuldades…
A vida de Dita esteve muito longe de ser feita de total felicidade no tempo do pós-guerra. Muitas dessas provações estão exactamente na origem do título deste livro e da vida que sentiu sempre adiada de alguma forma… Uma das partes que achei mais enternecedora foi o regresso de Dita a Praga, já na velhice, em que visitou os locais onde viveu e verificou como a vida seguiu em frente e esses locais se alteraram aos longo dos tempos. Essa parte fez-me lembrar o final do filme “A mulher de ouro”, quando Maria Altman visita a sua casa de família em Viena, agora transformada num escritório (neste filme, testemunhamos a luta de Maria Altman, de origem judia, pela recuperação da obra de Klimt “Retrato de Adele Bloch-Bauer I” e confiscado à sua família pelos nazis quando ocuparam Viena e a sua casa de família. Este é um excelente filme que retrata a luta de tantas famílias para verem recuperadas milhares de obras de arte confiscadas pelos nazis e que, mais tarde, integram as colecções de alguns dos principais museus do mundo). O regresso a Praga pareceu funcionar como uma catarse na vida de Dita e a fez fazer as pazes consigo e com mundo, podendo deixar de ter uma vida adiada… Sem dúvida, um livro diferente de uma sobrevivente do Holocausto mas que se torna especial exactamente por nos trazer um olhar diferente sobre estas pessoas a quem tiraram tudo!
Detalhes do livro:
Título português: “Uma vida adiada. Memórias da bibliotecária de Auschwitz”
Título original: “A delayed life. The true story of the librarian of Auschwitz“
Autor: Dita Kraus
Editora e data de edição: Desassossego, novembro de 2020
Encadernação: capa mole
Páginas: 352
Classificação temática: Literatura – Memória e testemunhos
Classificação Goodreads:
Para além de “Uma vida adiada”
Se ficaste com curiosidade sobre este livro e queres participar no projecto “Ler é respeitar a história” em 2021, deixo-te algumas sugestões de leitura que tenho a certeza que irás gostar.
“Um livro briográfico”: “O Carteiro de Auschwitz”, de Joe Rosenblum, Alma dos Livros (podes ler a minha opinião sobre este livro neste artigo aqui do blog)
“Um livro que fale da Ahnenerbe”: “As relíquias sagradas de Hitler”, de Sidney D. Kirkpatrick, Alma dos Livros (podes ler a minha opinião sobre este livro neste artigo do blog)
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