Compreender a Shoá: Entrevista a Irene Flunser Pimentel
Falar de livros sobre a História de Portugal e Holocausto é falar sobre a Professora Irene Flunser Pimentel. Doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, possui uma vasta obra na sua área de formação, desde investigação aprofundada sobre a PIDE, o papel das mulheres portuguesas ao longo do tempo e a ligação entre o Holocausto e o Estado Novo. No dia em que se assinala a libertação de Auschwitz e o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, tenho o privilégio de partilhar contigo a entrevista que fiz à Professora Irene Flunser Pimentel. Como sabes, o tema deste mês do clube de leitura é a libertação de Auschwitz e não existe melhor forma de assinalar esta efeméride do que entrevistando um dos nomes maiores portugueses que escrevem sobre o tema.
E eu assinalo esta efeméride, começando hoje a leitura do livro “Holocausto”, da Professora Irene Flunser Pimentel. Este livro, publicado em Setembro de 2020 pela Tema e Debates pretende responder a um conjunto de questões sobre a Shoá ou Holocausto. Deixo-te aqui a sua sinopse:
Quando ocorreu a Shoá e que etapas levaram a esse crime? Quando souberam os Aliados e o mundo da Shoá, e poder-se-ia tê-la evitado? Como e quando soube o governo português do genocídio nazi dos judeus europeus? Esteve também Portugal, embora neutral, na rota da Shoá? Como foram descobertos os campos de concentração e de extermínio e de que forma foram julgados os criminosos nazis? E a opinião pública portuguesa, a viver em ditadura, quando e o que soube? «É para desfazer confusões, contribuindo para um conhecimento maior da Shoá, e também do papel de Portugal face a esse terrível acontecimento, com base na minha própria investigação, mas também na profusa bibliografia existente sobre o tema, em geral, e relativamente a Portugal, em particular, que proponho este livro.»
Ainda só li algumas páginas do livro e já consigo compreender a dimensão de conhecimento que esta leitura me vai trazer. Sem dúvida, uma excelente escolha como última leitura do mês para o clube de leitura e que podes também ler para o projecto “Ler é respeitar a história” na categoria “Um livro com mais de 200 páginas”. E, agora, partilho a entrevista que, espero, seja tão enriquecedora para ti como foi para mim!
Antes de iniciar a nossa entrevista, poderia falar-nos um pouco sobre quem é a Professora Irene Flunser Pimentel?
Sou portuguesa, de pai português e mãe suíça, e estudei no Liceu Francês Charles Lepierre de Lisboa, na secção francesa, do Jardim Infantil até ao último ano, de conclusão do liceu (Baccalauréat). Estudei durante um ano e meio na Universidade de Zurique (Literaturas Comparadas), mas depois “meti-me na política”, em Paris, regressei a Portugal, em 1971, trabalhei e comecei a viver em liberdade, com o 25 de Abril de 1974. Só recomecei os meus estudos universitários em História, tarde, aos 30 anos, na FLL, de 1980 a 1984. Nova paragem para trabalhar, enquanto levei a cabo o Mestrado e o Doutoramento em História na FCSH da UNL. Desde então sou investigadora, fui bolseira de Pós-Doc da FCT e sou investigadora integrada no Instituto de História Contemporânea da FCSH da UNL. A minha profissão é ser historiadora/investigadora em História.
Possui uma vasta obra (individual e com outros autores) focada no Estado Novo e na época da Segunda Guerra Mundial, de que se destacam “Salazar, Portugal e o Holocausto”, “Espiões em Portugal durante a II Guerra Mundial”, “O comboio do Luxemburgo” e o mais recentemente publicado “Holocausto”. Com surge o seu interesse sobre esta fase da História, em particular quanto ao papel de Portugal na Segunda Guerra Mundial?
Em termos de geração, sou “filha” da II Guerra Mundial. Pertenço à geração baby boom, de paz na Europa (nasci em 1950), mas ainda muito marcada pelos terríveis acontecimentos, entre os anos 20 e 1945. Desde sempre me interessei por História, pela luta contra a Ditadura e tive a noção de que o Holocausto foi uma ruptura tremenda, moral, social e política, na ética da humanidade. O facto de ter frequentado o liceu francês e de a minha mãe ser suíça e ter família na Suíça, também me tornou cosmopolita e mais próxima do que foi a Alemanha nazi, em termos de conhecimento. Em Portugal vigorou, até 1974, uma ditadura , que tinha sido neutral durante a guerra, e havia a tendência para voltar as costas à Europa e a convicção que nada tínhamos a ver com esses acontecimentos dos anos 40.
Acha que a população portuguesa, principalmente a mais jovem, se interessa por conhecer a sua história e o papel de Portugal em conflitos tão fraturantes mundialmente como foi a Segunda Guerra Mundial?
É sempre difícil, na nossa subjectividade (sem recurso a sondagens ou estudos), responder a essa pergunta com um sim ou não categóricos. O que eu sei é que, quando vou às escolas fazer conferências sobre o tema, há interesse, dependendo muito dos professores de História. Sei porém que nos últimos anos há uma desvalorização das disciplinas de História e Filosofia e uma tendência para o “presentismo”. Trata-se da falsa noção de que o que interessa é o presente, quando na realidade este só existe e é compreensível se conhecemos o passado e para tendermos para um futuro melhor. A História pode não evitar futuros terríveis acontecimentos, mas mostra-nos caminhos já trilhados e dá-nos conta daqueles pelos quais não pretendemos enveredar.
O seu mais recente livro, “Holocausto”, pretende responder a um conjunto de questões, como surge na sua sinopse. Qual acha que pode ser o papel deste livro no ganho de consciência dos portugueses sobre a Shoá e sobre o que foi o Holocausto?
Apercebendo-me que há em Portugal falsas ideias feitas sobre o que foi a Shoá – apesar de haver a ideia de que tudo sabemos sobre o acontecimento – pretendi, através da leitura que fiz da bibliografia internacional e da investigação realizada, sobretudo em Portugal, dar o meu contributo para o esclarecimento. O livro concebido como um manual para professores de História e todos os interessados nesta disciplina e no tema está dividido em duas partes: uma de esclarecimento sobre o que foi a Shoá e outra sobre a forma como Portugal e o seu regime intervieram ou não – indirectamente, é certo -, nesse terrível acontecimento. Alem do mais, também me interessa investigar o processo de memória em Portugal, sobre a II Guerra Mundial e as catástrofes a ela associadas.
Por último, e para terminar esta breve entrevista, acha importante que se continue a escrever, a ler e a falar sobre a nossa história e o nosso passado? O que nos pode isso trazer de aprendizagem enquanto portugueses e cidadãos do mundo?
Trata-se da minha profissão e da forma como exerço a cidadania, por isso só posso responder à primeira pergunta com a afirmativa. Como bem diz, somos portugueses e cidadãos do mundo e, como todos, temos de respirar ética, empatia e solidariedade para com as vítimas de regimes ditatoriais e totalitários no passado e presente. E, como já disse, penso que o conhecimento do passado (saber de onde viemos) é crucial para a análise do presente e sobretudo para que não possibilitemos hoje e no futuro novos crimes contra a humanidade. Defender a democracia dos seus inimigos é a nossa tarefa enquanto cidadãos, em solidariedade com as gerações anteriores as que vêm depois de nós. Sobretudo, temos de procurar eliminar a indiferença e a passividade. Como diz um grande historiador do nazismo, Ian Kershaw: “o caminho para o Holocausto foi construído pelos perpetradores nazis, mas foi pavimentado pela indiferença”.
Livros de Irene Flunser Pimentel que podes ler:
História das organizações femininas do Estado Novo
O comboio do Luxemburgo, de Margarida de Magalhães Ramalho e Irene Flunser Pimentel
Mulheres portuguesas, de Helena Pereira de Melo e Irene Flunser Pimentel
Democracia e ditadura, de Irene Flunser Pimentel e Maria Inácia Rezola
Espiões em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial
Salazar, Portugal e o Holocausto, de Cláudia Ninhos e Irene Flunser Pimentel
Cardeal Cerejeira. O príncipe da Igreja
Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial
Como sugestão de leitura, convido-te a ler o artigo publicado hoje no Blogue Somos Livros da Bertrand, com o inspirador título “Aristides de Sousa Mendes. Contra o ódio: amar e desobedecer”.
Professora Irene Pimentel, muito obrigada por ter aceite o convite para esta entrevista e proporcionar este olhar sobre o seu significado como forma de assinalar o dia em memórias de todos os que foram vítimas do Holocausto. Que se compreenda a história para que ela não se repita!
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